Este artigo foi escrito pelos sócios Felipe Santiago e José Santiago e está publicado no livro “Compliance e temas relevantes de direito e processo penal: estudos em homenagem ao advogado e professor Felipe Caldeira.” lançado pela Editora D’Plácido em 2018.
Imitação da liberdade com a medida de cautelar diversa da prisão
Felipe Amore Salles Santiago[1]
José de Assis
Santiago Neto[2]
1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República de 1988 traz de maneira expressa em seu art.5º, LIV, que ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal, porém o que vemos cotidianamente são decisões autorizando o aprisionamento seja este ainda na fase de investigação policial, bem como durante a ação penal e em fase de recursos.
Tais medidas, muitas vezes dotadas de maneira arbitrária, agravam mais ainda a situação prisional que já é delicada no Brasil. O déficit de vagas no sistema carcerário brasileiro beira ao caos completo, e tanto o executivo, legislativo, quanto principalmente o judiciário parecem não ligar para esta situação.
No meio da crise, surgiu como uma pequena esperança de melhora a lei 12.403 de 2011, que trouxe a previsão das medidas cautelares diversas da prisão para o nosso ordenamento. Previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, tais medidas ampliam as opções do magistrado que antes do advento da referida lei, só poderia manter o acusado solto ou preso durante a ação penal.
Realmente a criação desta lei pode ser considerada um ganho para o processo penal, pois com a situação prisional caótica em que vivemos, onde o estado não garante a segurança dos presos e muito menos fornece condições dignas de para a sua reinserção do sujeito na sociedade, ter a possibilidade de responder o processo fora destes locais insalubres é algo positivo, porém será que tais medidas não ferem também o preceito constitucional do estado de inocência?
O presente artigo científico irá debater o uso das medidas cautelares diversas a prisão em nosso ordenamento jurídico, colocando em evidência a limitação da liberdade do agente, bem como sua natureza cautelar ou antecipatória da aplicação da pena, analisando juntamente ao instituto da detração penal.
Em seu desenvolvimento analisaremos a atual jurisprudência que não enxerga as medidas cautelares limitadoras da liberdade como tempo de pena já cumprido antes do transito em julgado, bem como traremos o caráter de pena que possui tais medidas.
2 DAS PENAS.
Neste capítulo iremos trazer um breve relato sobre a evolução e o tratamento dado as penas já na fase pré-industrial, até os dias de hoje, colocando em debate suas funções e objetivos.
Com isso demonstraremos os aspectos das penas que incidem também nas medidas cautelares diversas da prisão que visam unicamente restringir a liberdade do indivíduo.
2.1 Evolução das penas e a docilidade dos corpos
Durante toda a história da humanidade, com a construção dos pensamentos de cada sociedade, a punição passou por diversas visões, tanto em relação a sua finalidade, quanto na sua forma de aplicação. As penas cruéis, suplicantes, destinadas atingir tão somente o corpo do acusado, passaram com o tempo a dar lugar a punições destinadas a exercer o poder sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições do condenado (FOUCAULT,2014. Pg.21).
Da antiguidade até o século XVII as punições tinham um caráter puramente aflitivo, punindo-se o corpo do condenado pelo mal praticado. Para Michel Foucault:
“ Desaparece, destarte, e, princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo suplicado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848.” (FOUCAULT,2014. Pg.19)
O suplício físico como o de Damiens, relatado nas primeiras páginas da obra Vigiar e Punir de Michel Foucault, passa a dar lugar a sobriedade punitiva, com punições menos direcionadas ao corpo físico, transparecendo um sofrimento mais sutil e velado.
Essa mudança é relatada por Michel Foucault:
“O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem dúvida a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perde de um bem ou um direito. Porém, castigos como trabalhos forçados ou prisão- privação pura e simples da liberdade- nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra.” (FOUCAULT,2014. Pg.20)
Para Salo de Carvalho:
“Antes de mais nada, é interessante percebermos que o surgimento da pena privativa de liberdade, “a” pena das sociedades modernas, foi êxito obtido por um movimento abolicionista que buscava substitutivos aos castigos corporais na Idade Média, fundamentalmente à pena de morte. Este movimento abolucionista quanto aos suplícios modificou a estrutura da justiça penal, determinando sua elevação a um grau de maturidade(civilidade). (CARVALHO, 2002, pg.03)
O código penal francês de 1810 trouxe três tipos de sanções: pena de morte, os trabalhos forçados e a casa de correção. O Estado francês, como uma escolha de política criminal, criminalizou a pobreza, tornando delitos a vagabundagem e a mendicância, sendo punidos com a internação nas casas de correção, visando o desenvolvimento do trabalho forçado (MELOSSI, 2014. Pg.94)
Para Salo de Carvalho:
“ Antes de mais nada, é interessante percebermos que o surgimento da pena privativa de liberdade, “a” pena das sociedades modernas, foi êxito obtido por um movimento abolicionista que buscava substitutivos aos castigos corporais na Idade Média, fundamentalmente à pena de morte. Este movimento abolucionista quanto aos suplícios modificou a estrutura da justiça penal, determinando sua elevação a um grau de maturidade(civilidade). (CARVALHO, 2002, pg.03)
Um período caracterizado pelo desemprego e pela miséria crescente, onde o trabalho forçado nas casas de correção teve como efeito a redução drástica dos salários externos, devido a disponibilidade de força de trabalho não livre em alguns ramos da produção. (MELOSSI, 2014. Pg.94)
A internação dos vagabundos e mendigos, bem como a de outros criminosos, nas casas de correções tinha um duplo funcionamento, tendo como principal e claro objetivo de transformar tais indivíduos em sujeitos ativos, prontos para trabalharem nas fábricas em condições sub-humanas, além de privar a liberdade destas pessoas.
Para Foucault (2014,pg.225), “o encarceramento penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos.”.
Completa explicando o autor:
“ “O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade”que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil o corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT,2014. Pg.134)
De acordo com Foucault(2014) a transformação destes indivíduos que não se enquadram no sistema produtivo capitalista em corpos dóceis, passa por quatro mecanismos disciplinares, sendo eles: a) a arte das distribuições, que é responsável pela distribuição do espaço ocupado por cada indivíduo no espaço; b)controle das atividades, que retrata o extremo controle do tempo do sujeito e de toda a atividade que irá desempenha, seja através das grades de horários, relógios de ponto, sinal de intervalo e etc; c) organização das gêneses: todo processo de docialização obriga o indivíduo a passar por diversas etapas, essa divisão faz com que o condenado tenha objetivos de progredir, gera a vontade de ser útil, sem saber que participa de um processo sem fim e d) composição das forças: aumento da disciplina de produção, tudo para que a massa carcerária se torne um único corpo maquinal. (FOUCAULT,2014, pg139/166).
Para toda essa engrenagem de poder funcionar, era preciso ter uma vigilância constante, um dispositivo que obrigue os reclusos a seguir as regras pelo jogo do olhar. Aos que se comportavam com a disciplina esperada, era chamado para se justificar perante as sessões do tribunal, que se reunia todas as manhãs, e decidiam os castigos a ser aplicado com a nítida função de reduzir os desvios.
No meio deste cenário de extrema vigilância, controle e punição, surge a figura arquitetural do Panóptico de Bentham, que consistia de acordo com Foucault:
“o princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha..” (FOUCAULT,2014. Pg.194)
O Panóptico coloca o condenado em um estado constante de vigilância, perpetuando o poder do carcereiro mesmo quando o preso não está sendo vigiado. Este estado é a garantia da ordem nos estabelecimentos.
Tal estado é uma sujeição real, que nasce mecanicamente de uma relação fictícia, que que não é preciso recorrer a força para obrigar ao condenado ao bom comportamento (FOUCAULT, 2014. Pg.196).
Além da docilidade dos corpos, do adestramento e do bom comportamento visando tornar produtivo aquele sujeito, veremos a seguir as funções da pena.
2.2 Funções das penas
Na tentativa de explicar o por que punir, surge o debate sobre a função da pena, na maioria dos casos gira em torno das teorias absolutas/retributivas, como também as relativas/preventivas.
Para Ferrajoli:
“são teorias absolutas todas aquelas doutrinas que concebem a pena como um fim em si própria, ou seja, como castigo “reação” ou, ainda, “retribuição do crime, justificada por seu intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas sim, um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento. São, ao contrário, “relativas” todas as doutrinas utilitárias, que consideram e justificam a pena enquanto meio para a realização do fim utilitário da prevenção de futuros delitos. (FERRAJOLI, 2002, pg.204)
Dentro da teoria relativa, que visa a prevenção de futuros delitos, encontramos a prevenção geral, bem como a prevenção especial, ambas subdividas em negativa e positiva.
A prevenção geral negativa, conhecida também por prevenção por intimidação, tem a pena aplicada ao criminoso como um fato dirigido a sociedade, a outras pessoas que pensam praticar outros delitos sociedade. Seu objetivo é causar uma reflexão para quando outra pessoa pensar em cometer um outro crime, ela desista com medo da sanção aplicada. ( GRECO, 2016, pg.585/586)
Também destinada para a coletividade, a prevenção geral positiva, visa incutir na consciência geral a necessidade de respeito aos valores protegidos pela legislação penal, promovendo assim a integração social. (GRECO,2016, pg.586)
Bem, se tais funções fossem realmente eficazes, não teríamos mais crimes. Bastariam as normas penais incriminadoras e suas respectivas sanções, para exercer no agente uma coação psicológica que inibiria a prática de futuros crimes.
A prevenção especial positiva, ainda que resgatem o pensamento filosófico da segunda metade do século XIX, traz a ideia de reeducação do réu para a seu futuro retorno para a sociedade, enquanto a prevenção especial negativa visa a neutralização, evitando assim o cometimento de novos delitos enquanto este estiver sob os cuidados estatais. (FERRAJOLI, 2002, pg.246)
As criticas a essas teorias são inúmeras. Em relação a prevenção especial positiva, fica a perguntar: como ressocializar alguém, retirando esse sujeito do convívio da sociedade, o afastando por completo. Além do mais, com as atuais condições precárias do nosso sistema penal, tal objetivo fica cada vez mais longe.
Já a prevenção especial negativa, não percebe que mesmo sob os cuidados do Estado, o condenado continua cometendo crimes, seja coordenando o crime organizado nas ruas, e principalmente cometendo os delitos internos das unidades prisionais, seja o furto, roubo, homicídio, trafico de drogas e etc.
Demonstrando toda a ilusão da teoria da prevenção especial negativa questiona Zaffaroni:
Os riscos de homicídio e suicídio em prisões são dez vezes superiores aos da vida em liberdade, em meio a uma violenta realidade de motins, abusos sexuais, corrupção, carências médicas, alimentares e higiênicas, além de contaminação devido a infecções, algumas mortais, em quase 80% dos presos provisórios. Assim, a prisionização é feita para além da sentença, na forma de pena corporal e eventualmente de morte, o que leva ao paradoxo a impossibilidade estrutural da teoria. (ZAFFARONI, 2003, p. 126)
Partindo da desconstrução da argumentação que justifica as teorias das penas mais debatidas, percebemos que esse discurso esquizofrênico de prevenção e retribuição que pautou todo o debate. Com base na criminologia percebemos que a pena não é capaz de ressocializar o cidadão, e muito menos servir de exemplos para que outros cometam novos delitos.
Por isso surge a teoria agnóstica da pena, que sugere o abandono do modelo ressocializador da pena, por ser completamente incompatível com a criminologia contemporânea, e por esconder em seu discurso reeducador os mais desumanos e medievais suplícios. Resta assim apenas a real função da pena, que é a de retribuir o mal causado pela conduta delituosa, restando a função da teoria agnóstica, apenas conceber o controle na minimização dos poderes arbitrários, direcionando os esforços nos critérios de cominação (proporcionalidade e razoabilidade), aplicação (objetivação dos fundamentos e resquisitos judiciais)e execução (juridicionalização absoluta). (CARVALHO,2002, pg.38/39)
Há de se salientar que a atuação penal, seja através da privação direta da liberdade do indivíduo ou através das medidas cautelares, priva algo muito além da liberdade: toma do ser humano seu tempo de vida (MESSUTI, 2003). Assim seja levando o indivíduo ao cárcere ou usando de medidas que não privem completamente sua liberdade, o direito penal toma uma fração do tempo de vida das pessoas, causando a elas danos impossíveis de serem desfeitos.
Partindo do estudo sobre a docilidade dos corpos e as funções da pena, passaremos a analisar as medidas cautelares que restringem a liberdade.
3 DAS MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO
A aprovação da lei 12.403 de 2011 trouxe importantes alterações no sistema de cautelares pessoais no processo penal. A legislação brasileira passou a ter outras medidas cautelares pessoais diversas da prisão, como traz o art. 319 do CPP
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
IX – monitoração eletrônica. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 4o A fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI deste Título, podendo ser cumulada com outras medidas cautelares.
Ora, a excepcionalidade para se decretar uma prisão preventiva tem que ser levada em consideração também ao se decretar uma medida cautelar diversa da prisão. Não pode o magistrado adotar tais medidas para todos os casos, correndo o sério risco de ferir a presunção de inocência
As medidas cautelares exigem a presença do Fumus Commissi Delicti e do Periculum libertatis, não podendo ser imposta sem a presença clara deles.
Afinal de contas, a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento, devendo o investigado ser tratado como inocente durante todo o processo.(LOPES JR, 2016, pg.598)
Este dever de tratamento atua em duas dimensões, conforme explica Aury Lopes Jr:
“ Na dimensão intera, é um dever de tratamento imposto- inicialmente- ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusado (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente a absolvição; ainda na dimensão interna implica severas restrições ao (Ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi devidamente condenado?)
Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusava e a estigmatização(precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiro limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizzaro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência.” (LOPES JR, 2016, p. 598).
Tais medidas deverão ter o caráter substitutivo, ou seja, funcionar como alternativa a prisão cautelar, respeitando sempre a proporcionalidade, de forma justificada, e não sendo banalizadas em sua aplicação. (LOPES JR, 2016, 675)
Para Aury Lopes Jr:
“Medidas como as de proibição de frequentar lugares, de permanecer, e similares, implicam verdadeira pena de “banimento”, na medida em que impõem ao imputado severas restrições ao seu direito de circulação e até mesmo de relacionamento social. Portanto, não são medidas de pouca gravidade.” (LOPES JR, 2016,pg 675)
Feita as devidas observações vamos analisar as medidas cautelares diversas que limitam a liberdade do imputado.
3.1 Proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar risco de novas infrações.
Prevista no art.319, II, do CPP, esta medida visa evitar que o agente pratique novos delitos. Utilizada em casos que o imputado pratica o ato quando está em determinados lugares e em determinadas situações, como por exemplo brigas em estádio, brigas em boates e etc.
Para aplicação desta medida, deve sempre existir um elo entre o crime praticado e o local que cautelarmente o imputado não pode momentaneamente frequentar.
Tal medida cumpre as funções da pena, encontrando nela elementos como a prevenção geral negativa, uma vez sua aplicação causa uma intimidação aos seus demais pares, causando uma reflexão antes de cometer futuros delitos com medo de uma possível sanção a ser aplicada.
Continuando a análise, é de fácil percepção a presença a prevenção geral positiva. Em diversos casos midiáticos, onde cada movimentação processual é manchete dos jornais, a adoção deste afastamento demonstra para a população a necessidade de respeitar os valores protegidos pela legislação, reafirmando assim a confiança no sistema punitivo.
As funções destinadas ao acusado também são facilmente percebidas. A prevenção especial positiva, com a privação de sua liberdade de ir e vir, o imputado recebe o recado claro que sua atitude foi reprovável, podendo assim buscar sua reeducação.
Porém esta medida cautelar de proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, tem a função clara de prevenção especial negativa, pois esta visa neutralizar o indivíduo, na tentativa de evitar o cometimento de novos crimes.
Hoje em dia, com o mundo totalmente conectado, evitar a presença física de uma pessoa em um ambiente, muitas vezes não inibe a prática de novos delitos, se a reclusão em estabelecimento prisional não consegue evitar tal feito, não seria um simples afastamento que resolveria a questão.
3.2 Recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o acusado tenha residência e trabalho fixo.
Presente no inciso v, do art.319, do CPP, esta medida cautelar possui de maneira clara todas as funções de uma pena.
Fundada no senso de responsabilidade e autodisciplina do imputado, permite a tal imposição proporcionar a docilidade dos corpos, na medida que impõe um padrão desejável de conduta ao agente.
A prevenção geral negativa e positiva sempre estará presente pois a aplicação de qualquer medida atingirá também os pares do imputado, com o intuito de gerar uma reflexão esperada na tentativa de evitar novos delitos, bem como atingira toda a sociedade reafirmando a confiança no sistema penal.
Novamente as funções de prevenção especial positiva, com a privação de sua liberdade de ir e vir, obrigando o acusado o recolhimento noturno e de finais de semana, é um o recado claro que sua atitude foi reprovável, podendo assim buscar sua reeducação, tornando seu corpo mais dócil as funções esperadas pelo sistema.
Outra vez o foco de tal medida é a função de prevenção especial negativa, na tentativa que o imputado estiver recolhido em sua residência, este não terá risco de novos delitos.
3.3 Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização de infrações penais.
Vejamos bem, tal medida cautelar é prevista no art.319, VI, do CPP, e é extremamente gravosa, aplicada principalmente em crimes econômicos e aqueles delitos praticados por servidores públicos, sendo uma clara antecipação da função de prevenção especial da pena. (LOPES JR, 2016, pg.680)
Perceba que as medidas citadas focam sempre no exercício da futurologia, acreditando que o imputado cometerá um novo crime, deixando claro também que ele já é considerado culpado do delito investigado, restando a justiça o papel de prevenir novos danos.
3.4 Monitoração eletrônica
Prevista no art.319, IX, do CPP, a monitoração eletrônica é uma modernização do Panóptico abordado por Michel Foucault em sua obra “Vigiar e punir”. Uma forma de controle baseada na vigilância constante, mesmo sem precisar de um carcereiro o tempo todo conferindo as ações do agente.
Tal medida aplica no imputado o estigma da pena, pois seu uso é visível e perceptível para todos na sociedade.
Assim já conseguimos afirmar a presença da função de prevenção geral negativa e positiva. Bem como o controle exercido a distância um exemplo claro de prevenção especial positiva e negativa.
Esta medida é muito utilizada para reforçar os aspectos da prevenção especial de outras cautelares diversas da prisão. Como o afastamento de certas localidades, pessoas, bem como um rigor em relação ao horário.
3.4 Da prisão (cautelar) domiciliar
Sem dúvida a medida que possui o maior caráter privativo de liberdade de todas as cautelares diversas da prisão. Previstas nos artigos 317 e 318, a prisão (cautelar) domiciliar.
Bem, apesar do caráter humanitário da medida, pois prevê hipóteses para aplicação em maior de 80 anos, como também para os portadores de doença grave, gestante e etc.
Em tal medida encontramos todas as funções da pena, como a prevenção geral e especial. Uma vez recolhido em prisão domiciliar, o imputado sofre com a privação de liberdade mazelas psíquicas causadas pela segregação.
4. MEDIDA CAUTELAR DIVERSA E A DETRAÇÃO PENAL
Computar o tempo de prisão preventiva na pena aplicada pela sentença está previsto no art.387, §2º, DO CPP e tem sua aplicação realizada sem problema por parte dos magistrados. Porém ao provocar o judiciário sobre a detração penal com base nas medidas cautelares diversas da prisão aplicada no agente, a decisão é bem diferente.
Vejamos então estes recentes julgados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. ADEQUAÇÃO DO REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA. SUPERVENIÊNCIA DA PROGRESSÃO AO REGIME ABERTO. PERDA DO OBJETO. DETRAÇÃO DO PERÍODO DE LIBERDADE PROVISÓRIA MEDIANTE MONITORAÇÃO ELETRÔNICA. DESCABIMENTO. MEDIDA QUE NÃO SE EQUIPARA À SEGREGAÇÃO CAUTELAR. JULGAMENTO DO RECURSO PREJUDICADO EM PARTE E, NESTA EXTENSÃO, DESPROVIDO.
– Se tratando de discussão acerca da adequação do cumprimento de pena em relação ao regime imposto na condenação, qual seja o semiaberto, o julgamento do agravo em execução penal se torna prejudicado pela perda superveniente do objeto, em razão da progressão para regime mais brando.
– A detração da pena privativa de liberdade se encontra disciplinada no art. 42 do Código Penal, sendo o dispositivo legal taxativo em determinar que seja detraído somente o tempo de prisão ou de internação, todos de caráter provisórios.
– Não se equiparam legalmente as medidas de prisão, sejam pela permanência em estabelecimento prisional ou em prisão domiciliar, com as demais medidas cautelares, impostas em desfavor da pessoa que não se encontra presa. Embora se considere que a prisão preventiva e a monitoração eletrônica se insiram na classificação de medidas cautelares, tais medidas se diferenciam, sobretudo, em razão da gravidade e da repercussão sobre a liberdade da pessoa. (TJMG – Agravo em Execução Penal 1.0231.17.017883-5/001, Relator(a): Des.(a) Nelson Missias de Morais , 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 21/06/2018, publicação da súmula em 02/07/2018)
Ementa: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. DETRAÇÃO PENAL. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. IMPOSSIBILIDADE. O instituto da detração penal está previsto no artigo 42 do Código Penal, e representa uma compensação pelo desconto na pena privativa de liberdade ou na medida de segurança do tempo referente à prisão provisória, ocorrida no Brasil ou no exterior, ou, ainda, do tempo referente à prisão administrativa ou internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. A inclusão das medidas cautelares diversas da prisão ao Código de Processo Penal, pela edição da Lei nº 12.403/2011, não permite que se amplie o rol das hipóteses de cômputo de pena cumprida, em desatenção aos comandos legais. Isso porque, embora, efetivamente, representem uma certa limitação à liberdade do agente, não representa gravame suficiente para permitir a detração. Assim, diante da ausência de previsão legal, e por não consistir o recolhimento domiciliar noturno e o comparecimento semanal em juízo em crucial cerceamento da liberdade do agravante, como ocorre nas hipóteses legais, não se cogita o deferimento da detração do período em que o apenado esteve sujeito às mencionadas medidas cautelares. Agravo desprovido. (Agravo Nº 70075747709, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dálvio Leite Dias Teixeira, Julgado em 28/06/2018)
Com base nessas decisões destes Tribunais de Justiça, podemos perceber que os magistrados estão decidindo erroneamente pela não concessão da detração, fazendo assim o condenado sofrer duas vezes pelo único ato praticado.
Ao decretar a soltura do acusado, submetendo o mesmo a uma medida cautelar diversa da prisão, o magistrado acaba condenando a uma pena que priva a sua liberdade, suprimindo o seu direito de ir e vir ao limitar seu horário e lugares que pode frequentar, submetendo-o ainda a uma vigia do poder punitivo vinte e quatro horas por dia.
Diante disso, avaliando as funções da pena e as medidas cautelares limitadoras da liberdade do agente, é possível afirmar que o imputado apesar de fora dos estabelecimentos prisionais, acaba se encontrando preso em um cárcere físico, como percebemos principalmente nas decisões de prisão domiciliar, limitação de horário e proibição de frequentar certos lugares, como também psicológica, exemplificado no efeito Panóptico da vigilância constante da monitoração eletrônica, submetido amplamente ao poder punitivo do estado de maneira antecipada, antes de uma condenação transitada em julgado.
5. CONCLUSÕES
Os benefícios que a lei 12.403 de 2011 trouxe com a ampliação do rol de medidas cautelares diversas da prisão são inegáveis. Sem essas opções a situação carcerária no Brasil estaria muito mais grave, com uma superlotação muito maior e causando danos irreparáveis a milhares de pessoas que hoje em dia não precisam ter este contato com as masmorras do século XXI, ainda mais na fase de instrução.
Porém, reconhecer o lado positivo da referida lei, não nós faz fechar os olhos para o real caráter das medidas cautelares que possuem sim características de pena, e devem ser assim tratadas em todos os momentos, de sua aplicação até na contagem da detração.
Só existe esse ponto positivo, pois a situação carcerária no Brasil está fora de controle. Não há vagas para os presos condenados, quem dirá para amontoar mais ainda os provisórios.
A máxima de que todos são inocentes e deverão ser tratados como tal até que se prove o contrário está prevista em nossa Constituição, sendo que aplicar qualquer medida cautelar limitadora de sua liberdade é sim uma medida extrema, que adianta sim a punição que poderá ser aplicada ao agente.
As decisões que enfrentam tal questão, tem se demonstrado pautadas em uma análise superficial em relação aos efeitos de tais medidas e as funções da pena. Bastando o argumento de considerar o rol do art.42 do Código Penal como taxativo, para negar os pedidos de detração com base no cumprimento das medidas cautelares.
Esquece o magistrado que acata tal posicionamento que o referido art.42 do CP, foi acrescentando ao nosso código em 1984, há 34 anos atrás, e com o advento da lei 12.403 de 2011, que disciplinou a matéria de medida cautelar, caberia uma nova análise mais criteriosa e atual deste antigo artigo.
As cautelares trabalhadas nesse texto são sim penas que privam a liberdade do agente, devendo ser por tanto consideradas para fins de aplicação da detração penal, decidindo de maneira errada nossos Tribunais, que ainda insistem em analisar tais pedidos de acordo com a letra fria da lei, sem ampliar o debate, reconhecendo que tais decisões aplicam o bis in iden ao condenado, ferindo um dos mais basilares princípios do direito penal e da teoria da pena.
Tais decisões poderiam deveriam analisar a situação sob a ótica do princípio da proporcionalidade, bem como os princípios da individualização da pena e da humanidade. Sua análise deveria considerar que apesar do condenado não ter ficado recluso nas condições sub-humanas dos estabelecimentos prisionais, ele também sofreu com as limitações de sua liberdade , neste cárcere pessoal, se sujeitando a proibições e imposições estatais, reconhecendo em tais medidas as funções gerais e especiais da pena.
Realmente não seria justo detrair de maneira igual a pena de alguém quem ficou preso preventivamente com quem ficou fora de um presídio sob limitações de outra medida cautelar diversa da prisão, porém também é extremamente injusto não detrair nada, sendo que é evidente que as medidas cautelares cumprem também a função de uma pena, devendo por tanto receber este tratamento. Caberia ao judiciário, até uma alteração legislativa, adequar a norma de 1984, com a realidade vivida atualmente, devendo acatar tais pedidos, remindo 1 (um) dia da pena, a cada uma quantidade dias de medida cautelar cumprida, como se faz em relação ao trabalho e ao estudo. Diminuindo os danos e afastando um pouco de um evidente bis in iden.
Referências
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como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
[1] Pós-Graduado em Ciências Penais (PUC-MG), advogado criminalista.
[2] Mestre e Doutor em Direito Processual (PUC-MG), professor de direito penal e processual penal (PUC-MG), advogado criminalista.